O rei do futebol conta que se aposentou pelo INSS, fala de seu papel para o país, defende o técnico Dunga e diz que faltam base familiar e estrutura emocional aos novos ídolos do esporte
Pelé pendurou as chuteiras em 1977. Em outubro do ano passado, foi a vez de Edson Arantes do Nascimento, que passou a receber cerca de 3 000 reais por mês do INSS. Mas os dois – o jogador e o homem – só sairão de campo depois da Copa de 2014. Até lá, Pelé continuará faturando com publicidade e palestras e promoverá o torneio no Brasil. Nesta entrevista, o eterno rei do futebol defende o desempenho de Dunga como técnico da seleção, fala sobre o (mau) comportamento dos novos jogadores e se estende sobre a importância do seu legado para o Brasil. Aos 68 anos, com seis filhos e oito netos, ele mantém o mesmo peso que tinha quando parou de jogar. Separado pela segunda vez, Pelé afirma que desacelerou seu ritmo para ter mais tempo livre com os filhos – e, fica subentendido, com o "monte de amigas" que conquistou mundo afora.
O senhor está rico? Posso dizer que, se souberem administrar o patrimônio que acumulei, meus netinhos não precisarão trabalhar. Mas não fiquei rico com o futebol como os jogadores de hoje. Ganhei dinheiro com palestras e publicidade depois que parei de jogar. Fiz muitos comerciais, mas nunca de bebida alcoólica, política, religião ou tabaco. Na Copa dos Estados Unidos (1994), a empresa (Diageo) do (uísque Johnnie Walker) Black Label estava disposta a pagar o que fosse para colocar o rosto do Pelé no rótulo. Não aceitei. Desde o ano passado, estou reduzindo a minha agenda de trabalho. Antes, eu só ficava dois meses por ano no Brasil. Quero inverter isso, para me dedicar aos meus filhos, ao meu sítio e ao Litoral, meu time de garotos lá de Santos. Depois da Copa de 2014, vou me tornar um aposentado de fato, porque de direito eu já sou.
Como assim? Eu me aposentei como atleta profissional no ano passado. Desde outubro, recebo quase 3 000 reais do INSS. Já pago meia-entrada no cinema e posso até pegar ônibus de graça.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso cobra 50 000 dólares por palestra. Quanto custa uma sua? Depende. Algumas eu faço até de graça. Mas o Fernando Henrique diz que cobra isso? Tenho minhas dúvidas... Tomara que cobre mesmo. O presidente Fernando Henrique me deu oportunidade de ser ministro e fez um dos maiores elogios que recebi na vida: disse que o Pelé é o Brasil que deu certo.
Foi bom ser ministro? Por causa dessa experiência, nunca mais quero ter cargo público. Faltam verbas e a política impede a gente de fazer as coisas. Nas reuniões ministeriais, eu pedia a palavra para reclamar que só (o ex-ministro da Saúde) Adib Jatene arrumava dinheiro. Dizia: "Ele pega dinheiro para doença. O esporte, que é preventivo, não recebe nada". Todo mundo acha que o Pelé poderia ser um grande presidente, mas essa possibilidade está descartada.
O senhor ainda recebe propostas de partidos políticos? Quase todo mês, recebo um convite ou para entrar na política ou para ser técnico de futebol. Vem proposta da Arábia, dos Estados Unidos, da Europa, da África... Mas, assim como não quero ser político, nunca quis treinar jogadores profissionais, que têm defeitos difíceis de tirar. E, depois de ter alcançado o que alcancei como atleta, a posição de técnico me deixaria vulnerável. O jogador perde o pênalti e o técnico é o responsabilizado e desrespeitado. O time não rende e quem paga é o técnico. Veja o que aconteceu com o Felipão (Luiz Felipe Scolari) no (clube inglês) Chelsea. Agora mesmo, o presidente do Santos, Marcelo Teixeira, me ofereceu 1 milhão de reais por mês para eu organizar o time. Disse a ele que a minha reputação e a minha tranquilidade valem mais que isso: não têm preço. O Edson não faria isso com o Pelé. Além disso, nem sempre o grande jogador é bom técnico.
Isso vale para o Dunga, que deixou de ser jogador para ser técnico do Brasil? Não, o Dunga não está pecando em nada. É honesto e tem personalidade. Muita gente o critica dizendo que ele não poderia ser técnico da seleção porque não tem experiência como treinador. Se o Vanderlei Luxemburgo e o Falcão foram para a seleção e não ganharam nada, por que o Dunga já teria de chegar lá ganhando tudo?
Sua decisão de não fazer publicidade de bebida já foi interpretada como hipocrisia da sua parte? Não vou dizer que nunca me diverti com bebida, mas sempre fui moderado. Só ia a festas nas férias e comecei a beber uísque quando parei de jogar. Esporte e farra não se misturam. O atleta tem de se cuidar para render em campo. No meu tempo, quando os jogadores eram menos farristas, a carreira dos ídolos durava quinze anos. Muitas estrelas de hoje duram um, dois anos e somem. As novas gerações são prejudicadas pelas baladas, pelas drogas e pelo álcool.
O que o senhor diria a ídolos como Robinho, que fazem farras e se envolvem em escândalos? Daria a ele o conselho que ouvia do meu pai: "Deus te deu o talento de graça. Cuide dele". O que fez diferença no meu caso foram a educação e a base familiar. Por isso, o Pelé nunca esteve envolvido em escândalos. Os garotos das novas gerações não contam com estrutura emocional e já começam a jogar ganhando muito dinheiro. O modelo tem de ser o do atleta equilibrado, que tem responsabilidade e se preocupa com sua carreira. O Kaká deveria ser um modelo para eles.
Os salários dos jogadores de futebol são altos demais? Eles ganharam essa dimensão por causa das empresas interessadas em fazer publicidade. O Santos pagava o meu salário com a bilheteria dos jogos. Fui para o Cosmos (time de Nova York) em 1975 por 7 milhões de dólares, naquele período uma soma gigantesca para quem trabalharia por um ano e meio. Agora, há jogadores que ganham isso em menos de um mês. Em compensação, no meu tempo, havia amor à camisa. Hoje, não há ídolos jogando no Brasil. O torcedor nem tem tempo de decorar a escalação do seu time.
O Romário diz ter feito 1 000 gols, um dos seus grandes feitos no futebol. É bom ser exemplo para a realização de coisas boas. Pena que o Baixinho não tenha conseguido chegar aos meus 1 283 gols em campeonatos oficiais. Nos 1 000 do Romário, foram incluídos gols de quando ele era juvenil e até infantil... O que interessa, porém, é o que o futebol e o Pelé trouxeram de importante para o mundo.
Qual foi essa contribuição? Quando tinha 17 anos e estava na Copa da Suécia, eu estranhava o fato de só ter jogador negro na Seleção Brasileira. Só depois que o Brasil foi campeão com o Pelé as outras seleções passaram a escalar negros. Os jovens têm de saber o valor que o Brasil tem e que o Pelé tem. Nós, brasileiros, por educação ou cultura, não damos valor ao que é nosso. O argentino é completamente diferente. Tem orgulho de tudo o que é seu. Todo mundo sabe que o Pelé foi melhor que Maradona: cabeceava melhor, chutava com as duas pernas... Maradona só chutava com a esquerda. Foi um grande jogador que, infelizmente, se envolveu com drogas. Mesmo assim, os argentinos ainda falam que ele foi o melhor.
O senhor acha que os brasileiros não lhe dão o devido valor? O brasileiro me ama, me adora. Agora, culturalmente, tem cisma com quem faz sucesso. De vez em quando, tem algum jornalista que inventa algo contra o Pelé. Como sou o Edson, amigo do Pelé desde criança, não ligo. É importante lembrar que o único know-how que o Brasil vendeu para os Estados Unidos foi o futebol – e isso ocorreu com a ida do Pelé para o Cosmos. Depois disso, o futebol se tornou o esporte mais praticado pelos americanos com menos de 20 anos.
O senhor se sente querido nos Estados Unidos? Sim, tanto que a Embaixada dos Estados Unidos fez uma consulta para saber se eu poderia ir à posse do Obama. A vitória dele me deu uma grande alegria, mas não deu para ir. Tinha de gravar um comercial e sabia que ia ter gente demais lá. Mandei uma mensagem de parabéns. Até já recebi um e-mail dele dizendo que precisa do Brasil e que deseja trabalhar junto com a gente. Quando o Obama estiver mais calmo, sem essa pressão de bolsa, passo lá para tomar um café, como fiz com o Kennedy, com o Nixon e com o Clinton. Agora, outro dia me disseram que o Obama ficou mais conhecido que o Pelé. Aí, brinquei: "Por enquanto. Em quatro anos, ele pode até ficar mais famoso, mas eu continuarei a ser rei". Já ouvi até que o Pelé é mais famoso que Jesus Cristo.
De quem? De um jornalista japonês, durante uma entrevista coletiva. Como católico, reagi, mas ele se explicou. Disse que parte da população do mundo é católica, parte é muçulmana, mas a metade que fica na China, no Japão é budista. Nessa parte do mundo, segundo ele, o Pelé é mais conhecido que Cristo. Por essa divisão, ele tem razão. Mas não sou eu que digo isso, viu? Depois que os Beatles disseram que eram mais famosos que Cristo, começou a desgraça e o grupo acabou. Aliás, se os Beatles são sirs, eu sou Cavaleiro do Império Britânico, título que ganhei da rainha da Inglaterra. Na cerimônia, os copeiros e garçons do Palácio de Buckingham quebraram o protocolo para fazer fotos com o Pelé, que nunca prejudicou a imagem do Brasil e de sua família.
Mas o senhor se disse um pai ausente quando o seu filho Edinho foi preso por ligação com o narcotráfico. Fui ausente por causa do trabalho e resolvi falar porque havia muita injustiça com o Edinho pelo fato de ele ser filho do Pelé. O outro episódio negativo que envolveu o nome do Pelé foi o da filha que o Edson teve e nem ficou sabendo direito que tinha: a ex-vereadora de Santos Sandra Nascimento, que morreu de câncer em 2008. Muita gente falou mal do Pelé, acusou-o de abandonar a filha...
Ela precisou lutar na Justiça para ser reconhecida. Tanto Sandra como a fisioterapeuta Flávia Kurtz, que também é minha filha, já apareceram adultas. Elas não eram filhas de namoradas minhas. Nos dois casos, foi uma aventura, e as mães nunca me procuraram. Nunca tive intimidade com Sandra, mas senti pela sua morte por ter sido como foi, por ela ter parado de tomar remédios por motivos religiosos.
O Pelé já foi um fardo para o Edson? É difícil carregar a fama do Pelé. É um desafio minuto a minuto, porque as tentações são muitas. O Edson é humano e adoraria levar uma vida mais divertida, mas sabe que é o equilíbrio e a base do Pelé. Os dois sabem quanto é importante não decepcionar o povo brasileiro.
O senhor continua solteiro? Sim, e não estou procurando namorada. Vai aparecer naturalmente e todo mundo vai saber, como soube quando comecei a namorar a Xuxa. Todo mundo soube quando me casei e quando decidi me separar da Assíria, que é um pouco radical com a religião evangélica. Ela levava os pastores para casa, mas eu não podia levar os meus amigos católicos. Em catorze anos de casamento, só pude receber os meus amigos em casa duas vezes.
Mas o senhor tem saído com algumas mulheres? São amigas. Graças a Deus, sempre tive um monte delas no Brasil, em Nova York... A maioria gravou comerciais comigo. Depois que gravei com a atriz Isis Valverde, queriam saber se ela era minha namorada. É só amiga.
O senhor está com 68 anos. Sente o peso da idade? O Pelé é imortal. O Edson não tem medo de envelhecer, nem de morrer. Agora, eu me preocupo com a minha saúde. Faço exercícios e fecho a boca para manter o peso: 78 quilos, o mesmo que eu tinha quando parei de jogar. É bom para a minha altura, 1,72 metro. Com o topete, ganho mais 1 centímetro. Tenho pouco cabelo branco. Não pinto o cabelo, só uso um xampu que equilibra a cor. A minha vaidade é andar bem vestido. Todo mundo pensa que eu compro roupa na Itália ou na França. Na verdade, trago os modelos para o Everaldo, meu alfaiate em Santos. Tenho conjuntos iguais a este (da foto) de todas as cores.
Fonte: revista veja /Sandra Brasil