Além das retinas

Uma imagem sempre chega a mente de Soraia de forma serena: uma senhora corpulenta, de vestido branco com hibiscos azuis, com sua bengala caminhando calmamente e com dificuldades pelas ruas. Ela tenta atravessar uma via movimentada, fica um bom tempo tentando até alguém pegar em seu braço e levá-la do outro lado. Ela agradece a gentileza com um sorriso.

Soraia, uma adolescente entrando na idade adulta vive em crise, percebe que este retrato a tem visitado com mais frequência nas últimas semanas. A garota, de cabelos cor de romã madura, tenta encontrar uma razão. Por que a vê sempre se nunca a viu de verdade? Será que o seu cérebro construiu esta cena? Será que foi baseado em um filme? Em um livro? Em um diálogo? Do Imaginário? De onde vem?

Estas perguntas a cercam dia e noite. Soraia transformou a imagem de uma senhora caminhando serenamente em um presságio: ficaria cega. Esta ideia despertou nela o desejo de perceber as nuances de cada cor, ver e guardar na memória a cor dos olhos de seus pais, irmãos, amigos, dos bichos... A menina, de sorriso conciliador, queria ver de novo o horizonte alaranjado do pôr - do - sol, o azul acinzentado das nuvens carregadas, o amarelo radiante dos girassóis... Soraia começou a perceber o arco-íris que a cercava.

Despertou de manhã e correu para a biblioteca e de repente queria ler todos os livros. Dos romances mais doces e dramáticos aos livros de biologia. Logo tomou consciência que não conseguiria, mas pensava que não teria tempo. Se questionava angustiada como iria ler seus livros se são poucos os títulos publicados em braille? Como ler as revistas nos domingos de manhã? Como aprender andar por estas calçadas tão irregulares de olhos fechados? Como fazer o arroz-doce com canela sem enxergar?

Quantas mudanças. Soraia, então, começou a prestar atenção nos detalhes e se preparar para mudança que considerava inevitável. Começou a viver diferente. A profecia não passou de uma fantasia, porém, agora enxerga além das retinas. Enxerga as dificuldades alheias, os sonhos dos outros, a necessidade de recomeçar a viver diferente. A imagem da senhora idosa foi embora como um sopro assim como havia chegado.

  • Digg
  • Del.icio.us
  • StumbleUpon
  • Reddit
  • RSS

1 comentários:

Mário Sioli disse...

Além das retiinas, um titulo que traduz, que estimula o que está por vim. Temos que começar a rompê-las e ver além do imaginado, se abrir de fato e buscar se colocar no lugar do outro e exigir a qualidade de vida que todos merecemos.
Vanuza é muito bom vim no seu blog.
Beijos moça.